“Suponhamos,
como nos contos de fadas em que as coisas mudam de formas, que o corpo é
um Deus por si só, um mestre, um mentor,
um guia autorizado. E daí? Seria prudente passar a vida inteira torturando esse
mestre que tem tanto a dar e a ensinar? Desejamos passar a vida inteira
permitindo que os outros depreciem nossos corpos, julguem-nos, considerem-nos
defeituosos? Será que temos força suficiente para renegarmos o pensamento geral
e prestar atenção, com profundidade e sinceridade, ao nosso corpo como um ente
poderoso e sagrado?
Está
errada a imagem vigente na nossa cultura do corpo exclusivamente como
escultura. O corpo não é de mármore. Não é essa a sua finalidade. A sua finalidade é de proteger, conter,
apoiar e atiçar o espírito e alma em seu interior, a de ser um repositório para
as recordações, a de nos encher de sensações - ou seja o supremo alimento da
psique. É a de nos elevar e de nos impulsionar, de nos impregnar de sensações para
provar que existimos, que estamos aqui, para nos dar uma ligação com a terra,
para nos dar volume e peso. É errado pensar no corpo como um lugar que
abandonamos para alçar vôo até o espírito.
O corpo é o detonador dessas experiências. Sem o corpo não haveria a
sensação de entrada em algo novo, de elevação, de altura, de leveza. Tudo isso
provem do corpo. Ele é o lançador de foguetes. Na sua cápsula, a alma espia lá
fora para a misteriosa noite estrelada e se deslumbra”[1].
Estamos experimentando na atualidade
as conseqüências de centenas de anos de dicotomias e dualismos entre: corpo e
mente, corpo e alma, materialidade e essência, trabalho manual e trabalho
intelectual, existência e essência, pensar e sentir, razão e emoção, senhor e escravo,
soberano e vassalo, bem e mau, objetivo e subjetivo, masculino e feminino,
homem e mulher, dever e prazer, empirismo e idealismo, natureza e cultura.
De acordo com Silva[2],
as dicotomias se concretizam com a valorização de um dos pares, em detrimento
do outro, com a valorização da própria necessidade de manutenção das dualidades
e com a crença na positividade da intervenção humana sobre a natureza. Para a
autora,
“a discussão adquire maior significado
ao se considerar o corpo como um ponto privilegiado na interconexão entre
natureza e cultura, pertencendo, concomitantemente, a ambos os mundos – natural
e social – fato que o torna uma temática privilegiada, nestes tempos em que a
situação mundial caótica, mergulhada na ordem econômico-social capitalista, se
vê complicada por uma crise ecológica sem precedentes”(p.26).
Em outro texto, Silva[3]
coloca que em Descartes, alma é puramente alma e corpo é puramente corpo, sendo
este do domínio da natureza, princípio que autoriza a razão, ciência, a conhecê-lo
e dominá-lo. Esta perspectiva, que concebe o corpo independentemente da
essência e associado estritamente à materialidade, deixa marcas ainda hoje.
Tomando como referência este último
texto de Silva, passo a recapitular um pouco da história corporal.
Por muito tempo, a ciência progrediu
percebendo o corpo numa decomposição de partes, em arranjos diferenciados de
tecidos e órgãos, distanciado da sua complexidade inerente. A concepção
higienista, marcada pela obra de Pasteur,
interferiu nas práticas do corpo e fez com que a medicina e as
expectativas corporais se rendessem à lógicas dos laboratórios.
Caminhando um pouco mais na
história, observa-se que a representação do corpo como matéria inerte, estruturada tendo como exemplo a
máquina a vapor, cede lugar a uma outra concepção, onde o corpo passa a ser
dotado de uma força própria, inspirada na transformação social, onde as crenças
estão “numa força autônoma, inventada por uma burguesia confiante em suas
próprias energias físicas, confiante sobretudo em vigores totalmente
independentes das filiações e laços sanguíneos”[4].
Constitui-se um novo esquema de escuta e apreciação de si mesmo, no qual o
corpo se encontra no centro das preocupações.
A ameaça que os banhos
representavam, a partir do século XV, devido à porosidade da pele, que seria
uma “estrutura frágil e de fronteiras duvidosas”, foi substituída, no
século XVIII, pelo valor terapêutico dos banhos de mar que se proliferaram.
Sabe-se que durante estas práticas, a nudez masculina era admitida até meados
do século XIX e a da mulher nunca fora detectada.
Neste contexto social, o controle do
corpo enquanto sexualidade, passa a ser fundamental, visto que o sexo “se
encontra do centro da articulação entre
as disciplinas individuais do corpo e as regulações da população; se
constituiu na chave para garantir a vigilância sobre os indivíduos e o controle
sobre o corpo social”[5]. O
corpo, enquanto espaço de anatomia política, viabilizava a in-corpo-ração,
ou internalização de preocupações terapêuticas e morais que regiam as condutas
sociais.
Na atualidade, não é difícil
observar o quanto de tal bagagem adoecida, dicotomizada, de controle e
submissão, ainda carregamos em nossos corpos. No contexto atual, perpetuando o
intuito de “libertar o ser humano da tirania da natureza”[6],
existe uma tendência em continuar optando-se por manter a perspectiva secular
que aprisiona o corpo à materialidade e que o distancia das suas dimensões
afetiva, sensorial e experimental.
Pompeu[7]
considera que a retomada do corpo do ponto de vista estético tem como “conseqüência
um corpo alienado” visto que ele “é vivido através da busca de padrões,
sem expressividade, sem historicidade, onde não se fala de si, mas de um objeto
que deve ser moldado, controlado e onde não há lugar para a diferença”. A pesquisa da autora apontou ainda, para uma
relação ambivalente com o corpo: “ao mesmo tempo que é cultuado, é
considerado tema inferior nos assuntos humanos, do qual as pessoas se
envergonham em falar”.
O
corpo, enquanto lugar prático de controle social, como foi esboçado, encerra em si mesmo o público.
Entretanto, por outro lado, encerra em si mesmo também o privado, visto que,
dentre outras tantas possibilidades, ele é a manifestação do indivíduo,
uno, em sua totalidade: suas carências,
seus receios, suas angustias e frustrações, suas alegrias, seus prazeres e suas
satisfações. Ou seja, paradoxalmente, o corpo é, por si só, veículo de
expressão de um indivíduo, de uma coletividade, de uma cultura.
Se, numa perspectiva, o “bum do corpo”,
registrado a partir dos anos 80, veio a intensificar o seu culto, noutra,
entendo que veio provocar novos olhares sobre esse mesmo corpo. Neste sentido,
mesmo considerando que, cotidianamente, o indivíduo é impelido, ainda hoje, à
negação sensório-emocional, proponho refletir sobre o corpo, especialmente
sobre o corpo feminino, enquanto
individualidade-social, sensorial, experimental
e afetiva.
Maria Tereza Naves Agrello
[1] Estés, Clarissa Pinkola. (1994) Mulheres que correm com os lobos. 12ª ed. RJ: Rocco, p259.
[2] Silva Silva, Ana Márcia. (2001).A natureza da Physis humana: indicadores para um estudo da
corporeidade. Em: Soares, Carmen (org.). Corpo e história. Campinas, SP: Autores
Associados. P 25-42.
[3] Silva, Ana Márcia. (1999). Elementos para compreender a modernidade do corpo numa
sociedade racional. In: Cadernos Cedes, ano XIX, nº 48 (p7-29).
[4] Vigarello apud Silva (1999) p14.
[5] Silva,
Ana Márcia. (1999) p16.
[6] Silva,
Ana Márcia. (1999) p17.
[7] Pompeu, Tânia G. (1998). Corpo humano e a alienação estética de nosso tempo.
Dissertação de Mestrado, FAFICH/UFMG, Belo Horizonte..