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PARA ALÉM DOS SHOPPINGS, PARA ALÉM DA “saúde”

Há algum tempo, recebi um jovem de 15 anos encaminhado com queixa de timidez e retração social.

Sua voz parecia sair com dificuldade de seu peito, vinha em frases curtas um pouco emboladas. As palavras, na sua maioria, eram monossilábicas, as demais vinham sem algumas letras, não sei se por terem sido engolidas ou se por nunca terem participado da construção cognitiva desse belo rapaz, talvez por ele nunca tê-las ouvido, visto que a fala local é bastante “pitoresca”.

No processo de atendimento, quando consegui que ele me olhasse nos olhos, após muitos momentos de descontração, descobri um jovem com olhar intenso, sorriso lindo e muita, muita, muita vergonha de ter dificuldades na escola. 

Ele já havia feito vários exames e nada encontravam, a não ser o mesmo quadro de semianalfabetismo que eu estava observando.



Sua opção para lidar com o universo social era o "fechamento" em si, na tentativa de passar desapercebido. 

Continuando a investigação sobre a realidade desse rapaz encontrei:

Mais novo de vários irmãos, ele era o único que morava com os pais, numa casa modesta, distante de tudo e de todos, num lugar de difícil acesso, onde o transporte mais próximo só passava às 6h da manhã e retornava às 12:30h, e pegava-os a uma distância de quilômetros de caminhada. Seus pais, por sua vez, não tinham ido à escola. Quando chegava da escola, suas atividades consistiam, basicamente, em cuidar dos animais, jogar “video game”, assistir TV e jogar bola, eventualmente. Livros? Nem menção. 

Milhares de interrogações eclodiram em minha cabeça: Qual a vivência com a leitura e a escrita desse jovem? Qual a sua "necessidade" diária da leitura e da escrita? Quais os elementos estimulantes foram-lhe ofertados, para ler, para escrever? Quais prazeres foram despertados nesse jovem em relação ao universo da leitura e da escrita, do aprendizado? Como suas dificuldades foram percebidas e acolhidas pelos pais e pelos educadores? Com quais conceitos de aprendizado esse garoto lida cotidianamente?

Na minha perspectiva, o trabalho a ser feito com esse sujeito, e tantos outros, vai muito além do atendimento psicológico, extrapola o que convencionou-se a chamar de área da saúde – exclusivamente preocupada com a doença - e compreende  a SAÚDE enquanto “recurso para a vida”[i], cingindo as áreas da educação, do transporte, de obras de infraestrutura, do lazer, do esporte, da cultura, da geração de renda e por aí vai.

Mesmo estando no século XXI, andando um pouco além dos shoppings e dos grandes centros urbanos, deparamos com realidades completamente incompatíveis com os avanços da modernidade. Transitando pelas entranhas esquecidas e distantes do nosso País, confrontamos com a contingência do trabalho em rede; com a urgência de políticas públicas de promoção de saúde e qualidade de vida. Só mesmo andando um pouco mais pelas estradas empoeiradas e convivendo com as pessoas para a gente entender um pouco mais sobre o outro lado da "realidade Brasil".

Ações nessa direção podem parece secundárias para uns, fonte de corrupção para outros, difíceis para uma parcela, inviáveis para outros tantos, banais para alguns, inimaginável para uma parte da população, porém, são vitalmente essenciais para uma quantidade considerável de pessoas. 

Pessoas essas, que, como qualquer outro sujeito de ação, escrevem a historia - de continuidade ou transformação - do nosso País, cotidianamente, a partir de suas bagagens de vivencias, oportunidades e aprendizados pessoais.

Meu Deus! Qual história do Brasil estamos escrevendo?


Maria Tereza Naves Agrello







[i] Carta de Ottawa,1986 – Primeira Conferência Internacional sobre Promoção de Saúde. 




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